A profusão de sensações e sentimentos me impede de tratar qualquer
coisa objetivamente. A mistura de sentimentos passados, com a mais absoluta
liberdade e maravilhamento do presente, com a gravidade de construir futuro, a
suavidade de compreender o dentro, sem ânsia, sem desejos, sem sobressaltos,
quase sem lembranças, com emoções imperfeitas a me dar vagamente uma ideia de
casa, e uma ideia de vida além da que vive estritamente o momento que eu vivo, só,
e no sonho das sensações. Essas emoções imperfeitas são o fio da pipa, que prendem o meu sonho de viver, alado, à identidade terrestre,me traz a uma história que eu devo contar.
Antes de narrar o que me aconteceu desde que sai com a bicicleta
definitivamente, rumo à estrada pro norte, devo dizer, só para manter a inteireza dessa
realidade, que nem tudo são flores. Ainda me restava uma borra de mágoas do que
deixei para trás, no fundo de uma xícara usada. Pequena o suficiente para ser
notada. Não é mais uma infusão viciante de algo que aquece e
irrita. Eu já não vejo o que beber, só lembro, eventualmente chateado, que
tenho de lavar a louça. Ainda devo confessar que me resta também uma onda de desejos
infantis em impressões partilhadas com gente de casa, gente que dá vontade de
tocar, do Rio de Janeiro que me criou e que me cria amores. Rio ao qual eu
pertenço e ao qual voltarei. Um desejo que eu gostei de deixar incontido -para
exercitar o sonho e sentir de novo ouvidos e fragilidades de gente.
Dito isso, prossigo.
Dito isso, prossigo.
Na manhã do dia 03 de setembro, segunda feira, eu acordei 8 da manhã.
Ajeitei os últimos detalhes da bicicleta, que é mais pesada que a outra, mas pelo menos já tem bagageiro e cestinha (o que me ajudou bastante), e parti até as
barcas. Das barcas de Niterói fui para São Gonçalo, pela BR 101;
Parei no segundo posto Shell da rodovia, em Jardim Catarina. A frentista estava abastecendo um caminhão baú bem velhinho. Enquanto ela abastecia, perguntei se conseguiria carona para o nordeste ali. Ela fez uma cara super feia, dizendo que achava muito difícil que eu conseguisse carona para qualquer lugar que fosse. Reparei no cara que dirigia o caminhão baú e achei o sujeito simpático. Perguntei seu nome, e para onde ia.
Parei no segundo posto Shell da rodovia, em Jardim Catarina. A frentista estava abastecendo um caminhão baú bem velhinho. Enquanto ela abastecia, perguntei se conseguiria carona para o nordeste ali. Ela fez uma cara super feia, dizendo que achava muito difícil que eu conseguisse carona para qualquer lugar que fosse. Reparei no cara que dirigia o caminhão baú e achei o sujeito simpático. Perguntei seu nome, e para onde ia.
O João era um cara muito simpático e simples, quase infantil. Tinha suas idiotices e violências como qualquer um (não comigo, em algumas de suas histórias e causos) mas era um cara bom, e solitário. Não é muito delicado falar disso, mas é inevitável para mim: Ele ganha 2.000 reais por mês, mais 90 reais de diária para comer. Não que isso seja muito, ou sequer justo. Mas eu fiquei impressionado por considerar que ser caminhoneiro já uma vida melhor do que a da "cidade" e a vida de "mercado". Paramos para descarregar em Macaé, e eu o ajudei a descarregar. Ele deu carona também para um bombeiro até a entrada de Campos.
Quando chegamos no Atacadão de Campos eram quase dez da noite. O João pagou o meu jantar em um posto e me deu 20 reais, por tê-lo ajudado a descarregar. Agora eu já tinha mais dinheiro do que quando sai de casa. Estava alimentado e bastante ao norte! Perfeito. O atacadão não estava mais aberto para descarregar. O caminhoneiro João ia dormir encostado na entrada. No posto onde estávamos não tinha mais caminhões, e me recomendaram um outro, oito quilômetros dali. Mas eu não iria pedalar na BR a noite. Acabei pedindo para dormir na traseira do caminhão, e o João deixou.
Quando eu deitei para dormir estava bem agasalhado, puxei o computador, uns fones de ouvido, e pus o disco "Terra" do Sá, Rodrix, e Guarabyra. Notar a improbabilidade deliciosa daquela situação, notar a natureza selvagem e tomar parte dela, socialmente, notar a amabilidade do mundo que eu explorava... todas essas notâncias me comoveram de um modo muito inteiro, e mesmo dentro do caminhão fechado, eu pude ver as estrelas e sentir a grama embaixo de mim, como uma memória proustiana de algo que eu não vivi de verdade naquele momento.Embora tenha vivido intensamente dentro de mim naquele momento. Senti uma ponta de saudade doída, mas orgulhosa e calejada, dos antigos presentes da vida, dos que quebraram, dos que foram embora, enquanto observava a capacidade infinita do universo de nos proporcionar o desembrulhar de novas e insondáveis dádivas. Apesar de doída, essa saudade orgulhosa foi boa. Pela primeira vez despida de mágoas. Talvez por ser orgulhosa. A despeito de tudo, eu me orgulhava das fotos, e das minhas mãos, e da minha língua... Eu me orgulhava do carinho e do sonho, me orgulhava de não ter tido medo, e de ter feito o tempo todo exatamente o que eu quis fazer. Acabou. Eu estava na cura. Ressentimentos só quando deixo alguma atenção colidir no passado. Mas eu estava agora exatamente onde eu queria estar quando comecei essa viagem. Estava mergulhado no oceano do futuro, e no caminho da minha própria natureza. Na traseira do caminhão nada atrás de mim me interessava. Tinha esgotado a morte do meu antigo norte, e também a minha própria curiosidade quanto a ele. Tudo que eu chamei de família um dia, tudo que eu considerei casa, estava definitivamente fora da minha vista e fora de qualquer plano futuro de contato. Eu tive certeza de que iria sobreviver sem nenhum dos grilhões, sobretudo os da estupidez, do abandono, e do medo. Eu nunca senti um alívio tão enorme na vida, completamente sozinho.
Acordei seis da manhã, no dia 04 de setembro, enérgico, renovado,
quase eufórico. A sorte do primeiro dia se alastrou no meu corpo. Arrumei as
coisas, me despedi do João, e parti, rumo ao norte mais uma vez.O pessoal do atacadão iria descarregar em instantes e então ele voltaria para Amparo, no sul de São Paulo; sua casa.
Lá depois da fronteira com o Espírito Santo tinha um posto fiscal, onde todo caminhão de carga era "obrigado" a parar. Quando eu entrei no restaurante\lojinha do posto, o atendente me olhou e disse: "nós temos banheiro com água quente, se você quiser tomar banho" antes que eu pudesse dar boa tarde. Era meio dia, e eu fui tomar banho. Depois, no mesmo posto, almocei um PF de 7 reais que dava para duas pessoas fácil, tinha arroz, batata, macarrão, feijão, farofa, salada. Vi uma entrevista com o neurocirurgião do Miguel Couto que tinha uma história muito bonita. Pena que a entrevistadora era a imbecil da Fátima Bernardes. Depois de ter comido e tomado banho, ajeitei novamente minhas coisas e fui tentar carona. Passaram vários caminhões e nenhum podia me dar carona, ou eram lacrados, ou rastreados, ou não tinham lugar para bicicleta. Fiquei mais de uma hora tentando. Pensei que não queria passar a noite no posto e tentava me decidir se continuava tentando, ou se pedalava até Cachoeiro, mais 70 quilômetros. Não podia esperar muito, senão ia pedalar a noite. Aquele posto de fiscalização definitivamente não era o melhor lugar para pegar carona. Quando estava quase partindo, convenci dois caras que estavam indo para Cariacica (uns 15 quilômetros de Vitória) a me levar. Foi bem mais difícil do que com o João, dessa vez eu tive que insistir muito. Mas lá se foram outros 130 quilômetros. Os caras acabaram se mostrando muito simpáticos, embora eu já não lembre o nome deles.
Quando cheguei em Vitória (depois de descer em Cariacica e pedalar o restante) , graças aos vinte reais que o João havia me dado, ainda tinha, apesar do PF, do coco, da passagem da barca e qualquer outro gasto que não me lembro, mais dinheiro do que tinha quando sai de casa. A sensação de entrar, assim, de graça, em outra capital, já tão distante, foi profundamente gloriosa.